Eu não atinava em nada

 

Certas coisas tornam-se óbvias depois de ditas. Não porque um gênio as extrai dos confins misteriosos dados por existentes entre o céu e a terra (má tradução de Shakespeare) e as revela aos comuns. São coisas, suponho, que intuímos, então, se ouvimos alguém verbalizá-las, caem-nos como evidentes. Seja: já as sabíamos, apenas não havíamos pensado metodicamente sobre elas.

 

Lupicínio Rodrigues poetiza que “o pensamento parece uma coisa à toa”, e se espanta: “como é que a gente voa, quando começa a pensar”. Pensar pode ser devanear. Devaneio é conceber na imaginação, sonhar, segundo o Houaiss. Mas pensar também é filosofar. Filosofar é metodizar pensamentos. Considero que filósofo é o sujeito que bota razoável ordem na própria imaginação.

 

Eu estava a fazer esforço de organizar meus pensamentos, com a intenção de escrever. Não pensava em lançar filosofia ao mundo, que não tenho estatuto intelectual para tanto. Queria dizer essas crônicas que aprecio dividir com as pessoas, e só. Tentava recordar quem me reclamou indignado que nascera sem saber nada e vinha padecendo de excesso de esforço para aprender as coisas.

 

Não me lembro, então vou tributar o dito ao Anônimo. É que o pensamento carece de um autor, pois tem profundidade intelectual; é o equivalente popular de certa conferência pronunciada em 1945, em Paris, por Jean Paul Sartre. A palestra tornou-se um opúsculo: O Existencialismo é um Humanismo. Nele se discute a ideia condensada na frase famosa: “A existência precede a essência”.

 

A sentença encerra relevante controvérsia sobre a realidade humana. O que exprime a afirmação? Conforme o autor: “Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente é nada. Só depois será, e será tal como a si próprio se fizer”.

 

Dito em poesia, no jeito de Dorival Caymmi: “Quando eu vim pra esse mundo \ Eu não atinava em nada \ Hoje eu sou Gabriela \ Gabriela he! meus camaradas.” Então: Gabriela chegou vazia ao mundo. Não era uma pessoa, era um nada. Tinha existência, mas não tinha essência. Aí, foi vivendo, fazendo a sua história, construindo a sua essência, fazendo-se ser a Gabriela em que se tornou.

 

A responsabilidade do fazer-se traz os encargos da liberdade. Ser livre implica custo. O indivíduo tem razoável margem de eleição de caminhos, mas isso o angustia. Fazer escolhas que só o próprio indivíduo – e ninguém mais – pode fazer; isso assusta. Às vezes, ficamos vacilantes e não optamos. Não optar, contudo, também é uma escolha. Não temos, pois, escolha que não seja escolher.

 

O ser alienado não entende suas circunstâncias, é rebanho (Nietzsche). O ser consciente é livre, tem existência. Postergar a existência por medo de errar nas escolhas, protegendo-se de culpas, é um falso expediente. O mundo não dá sentido à vida; o mundo é, mesmo, um absurdo angustiante. O significado que pode ser encontrado na vida é o significado que nós damos a ela.

 

Anônimo aborreceu-se com a vida porque não nasceu informado das coisas e acabou tendo de se esforçar para safar-se de percalços e satisfazer suas vontades. A Gabriela, quando nasceu, não atinava em nada, agora é Gabriela. Eu, todo o dia, arrisco ser o que mais me venha ao gosto. E evito que se me aconteça coisa sem que eu faça parte dos sentidos do acontecimento. Gosto de viver

Léo Rosa de AndradeLéo Rosa de Andrade

Doutor em Direito pela UFSC.

Psicanalista e Jornalista.

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