“Deus está solto”

* Daniel Medeiros

Em setembro de 1968, Caetano Veloso escancarou para o público jovem que o assistia no Festival Internacional da Canção a falta de juventude deles: “Vocês não estão entendendo nada, nada”. A meninada, frustrada com a falta de liberdade que o regime militar patrocinava, sem perspectivas, forças ou imaginação para reescrever aquele roteiro de horrores, jogava suas fichas em um concurso de músicas, esperando que ali se desvendasse o mapa da mudança ditado por algum messias com roupas coloridas. E Caetano era um dos únicos intelectuais brasileiros (com Zé Celso, Glauber e Gil) que compreendia que a dicotomia que estava sendo esculpida nas ruas a golpes de cassetetes e coquetéis molotov era a dupla face de um único deus cínico e indiferente. E Caetano provocava os raivosos rapazes e moças que o agrediam com pedaços de cadeira e garrafas, indignadas por ele não estar cantando algo que eles pudessem acompanhar com os braços erguidos, em coro, seguindo a  marcha: “É essa juventude que quer tomar o poder?”

A estética que a juventude desancava buscava mostrar o quanto os generais estavam nus, as pelancas à mostra, diante de uma multidão de míopes: “é proibido proibir”, bradava Caetano, e proibições não têm partido ou ideologia, como o reacionarismo que percorria desde o mais recôndito porão de quartel até a mais descolada e efervescente rodinha de música de protesto. Proibir é interditar o movimento do futuro que não cessa de fluir. Mas a meninada não entendia o que não fosse palavra de ordem. E vaiavam.

O crítico Sérgio Cabral, testemunha ocular do tumulto, foi quem parece ter matado a charada: “o que irritou os espectadores foram os gestos femininos de Caetano.” Janus olha pra frente com a mesma lógica que olha pra trás. A proposta caleidoscópica de Caetano era demais para eles. E então vaiavam.

“Que juventude é essa? Que juventude é essa?”, profetizou o compositor baiano, como quem olha para o túnel do tempo e vê o passado e vê o futuro, e nele  jovens encarcerados em seus corpos com inscrições ditadas de antemão, incapazes de gestos sem significados já previamente traçados. Vaiando, vaiando, porque não havia palavras nos seus repertórios limitados para traduzir o que Caetano, o Obscuro, tentava explicar: panta rei.

Pouca coisa – quase nada – do que é dito hoje tem a força estranha das palavras de Caetano naquele longínquo ano de 1968. E quando, meses depois, os militares de cuecas borradas impuseram o AI-5, não sem a assinatura de uns tantos civis obedientes, os festivais foram se calando, os jornais, a televisão, a juventude amuada e, sem entender nada, nada, calou-se ou foi enfrentar o dragão da maldade com as armas que ele próprio havia inventado. Caetano foi preso sob a acusação de fazer paródia com o hino nacional e amargou meses de solidão e sofrimento, perplexo com o estado de coisas que achava que seus gestos modificariam. Depois foi para o exílio (e foi Roberto Carlos quem melhor o traduziu). Na cadeia, triste, lembrava da risada da irmã Irene e se emocionava com a imagem da Terra vista do espaço. A liberdade era a capacidade de produzir subjetividades sem amarras, sempre quis dizer Caetano. Mas essa lição ainda hoje enfrenta feroz resistência. A palavra do profeta baiano cumpre-se todo dia, em qualquer esquina: “Vocês sempre vão matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem”. E ninguém, de novo, parece perceber o que realmente está acontecendo.

 

Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros

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